segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O Berloque Prateado - CAP 1

Morgan descobriu, a duras penas, que precisava aprender a não dormir. Pelo menos não sofreria de insônia.

Desviou o olhar do relógio, sabia que estava atrasada. Não que se importasse, ao contrário, dos poucos prazeres que lhe restaram, não participar das refeições sociais era um deles e, como o próprio relógio acusava, já passava das oito horas quando finalmente desistiu de dormir.

As velas do quarto estavam acesas, pequenos demônios dançando sob luzes douradas, relembrando a quem ela deveria agradecer a inoportuna gentileza; mas ele estava ocupado demais recebendo e divertindo os convidados durante aquela reunião insípida, que servia apenas para atribular os empregados e fazer dela uma presença necessária. Uma obrigação a qual ela raramente atendia.

Francamente, qual a parte de "não entre em meu quarto" ele ainda não entendeu? Ou nunca ouviu a expressão Invasão de privacidade ou ignorava seu significado com a descarada intenção de contrariá-la. Admitiu que não colaborava muito para manter o desinteresse de Rúben em sua vida, pois sua insubordinação natural era um forte estímulo para um homem de perfil controlador e egoísta, entretanto, ela não era obrigada a mantê-lo feliz.

Sentiu a velha nostalgia tomando conta do seu coração novamente e observou cada detalhe do requintado aposento. Era clássico e prático, porém elegante. Apresentava uma imensa janela que em noites escuras descortinava uma bela visão do céu e em estações mais amenas proporcionava um panorama espetacular do jardim.

Levantou-se e tentou fixar o olhar em algum objeto para situar-se no tempo, poupando-lhe o estresse de uma queda desnecessária e a penosa tarefa de justificá-la pelo resto de sua vida. Suas vertigens estavam mais frequentes, deixando seu dia a dia mais tenso, principalmente sob a vigília constante de Rúben. Estas a assaltavam no meio do dia, deixando-a exposta e a ele perturbado.

Abriu a torneira da banheira, conferiu a temperatura da água e aguardou que esta se enchesse. Quando mergulhou na água morna, sentiu-se lânguida, como se o líquido drenasse todas as suas forças. Há quanto tempo estava naquele estado de torpor? Pareciam séculos, mas mesmo se esforçando muito não conseguiria se lembrar da última vez que sorriu. Deixou o corpo acomodar-se no leito marmóreo e relaxou.

Apesar de não ser um modelo de beleza, seu conjunto físico era atraente, exalava uma sensualidade natural e sua expressão era demarcada por seus olhos verdes, intensos e indiferentes. Eram como um espírito antigo habitando um corpo jovem, vivendo numa época totalmente estranha e desconexa, onde comunicar-se era quase impossível e sempre exaustivo. O silêncio era seu maior aliado.

Minutos se passaram enquanto ela simplesmente entregava-se àquele momento relaxante, porém, tinha de encerrá-lo. Deixou a banheira com cuidado, enrolou uma toalha no corpo e outra nos longos cabelos escuros. Mais dez minutos e estaria pronta para sua caminhada semanal, teria um pouco de sossego e liberdade fora daquela prisão; infelizmente, não antes de encontrar Rúben parado no corredor a aguardando para juntar-se a ele na biblioteca a fim de socializarem um pouco. 

Como de costume tomou seu remédio, que era fornecido diariamente sob o pretexto de deixá-la mais disposta e alegre. Uma encenação desnecessária na opinião dela. Devolvendo o copo à bandeja, abriu a porta do quarto e enfrentou a luz branca e fria do corredor deparando-se imediatamente com Rúben, firme como uma pedra e amuado como uma criança mimada. Imponente, sim, mas sem dúvida alguma a personificação da contrariedade masculina.

- Boa noite Morgan, como está se sentindo hoje? - ele perguntou incomodado.

Morgan já exasperada com aquela pergunta monótona, respondeu:

- Estou bem, obrigada.

Ele fixou o olhar nela por alguns segundos, condescendente, e ela detestava isso, sentia-se como uma adolescente rebelde.

Certa de que ele não continuaria aquela conversa, despediu-se.

- Preciso ir Rúben. - falando mais para si mesma do que para ele.

- Você não precisa ir Morgan. Nem à biblioteca nem a qualquer outro lugar que a desagrade, muito menos sozinha. - Xeque-mate! - ela pensou. - Sabe que posso fazer-lhe companhia a qualquer momento.

Ela apreciou a gentileza, mas não para aquela noite.

- Obrigada pela consideração Rúben, gostaria muito de retribui-la como merece, mas deixemos para outro dia, certo?

Percebendo que o magoara, mais uma vez, disse boa noite e dirigiu-se à porta principal do Château.

Uma distância tão curta que demorou uma eternidade para ser percorrida. Sentiu os olhos dele em suas costas, diminuindo seus passos e quase prendendo-a no chão. Que poder surpreendente, ela pensou. Ele certamente se esforçava muito para mantê-lo sob controle, entretanto o efeito sobre ela seria temporário e, apesar de amá-la muito, jamais conseguiria subjugá-la.

Aquelas caminhadas, apesar de breves, tinham um efeito sedativo, conseguiam desconectá-la da realidade e a transportavam para um estado mental calmo e claro, longe daquelas pessoas intrometidas que tentavam invadir sua vida reclusa com perguntas estúpidas e votos de melhoras.

Por isso, não se surpreendeu quando chegou à avenida principal e avistou o prédio azul e branco de dois andares. Perdera-se em pensamentos e, com eles, a noção do tempo.

Ao entrar na galeria não viu Nicolai na recepção, afinal, estava sempre atarefado, entre esculturas, materiais para entalhe e clientes circulando para cima e para baixo. De repente, ele saiu detrás de uma estante enorme carregando pequenas caixas e algumas sacolas. Assim que a viu sorriu carinhosamente e indicou as escadas que a levariam ao segundo andar. O mundo de Nina, sua pequena e esperta esposa bibliotecária.

Morgan subiu o pequeno lance de escadas e, ao entrar na biblioteca, encontrou alguns adolescentes no balcão, discutindo algo sobre quem faria a parte escrita do trabalho de história, mas foi interrompida antes de descobrir qual deles receberia a ilustre tarefa.

- Ah! Um passarinho me contou que você viria à biblioteca hoje Morgan, por isso, trouxe-lhe biscoitos de nozes. Trate de comê-los agora e não tente me enganar garota, porque a conheço muitíssimo bem. Entra e sai dos lugares feito um gato. É mais fácil encontrar Raven badernando pela cidade do você neste pequeno bairro.

Morgan, com seu sorriso diabolicamente infantil e olhar de menina travessa disse:

- Querida Nina, o seu gato preto estava deitado em cima do meu pacote lá na galeria. Qualquer dia desses eu o levarei para um passeio do qual ele não retornará tão cedo! E quanto aos seus biscoitos eu não os perderia por nada nesse mundo. Se existe algo que sentirei falta onde quer que eu vá, certamente serão dos seus dotes culinários. Mas não do seu gato! - riu maldosamente, pois sabia que Nina amava aquele bichano como a um filho.

- Não se atreva a tocar numa pulga de Raven sua criança maldosa! - Nina dramatizou, compartilhando aquele raro momento de descontração.

Assim que a zelosa bibliotecária se dispersou com outras tarefas, Morgan depositou a bandeja numa mesinha ao lado do balcão. Beliscou um biscoito, tomou o maravilhoso chá de maçã e canela que Nina fazia quando queria convencê-la de algo impossível e aproveitou para perambular entre as imensas estantes.

Lembrou-se dos livros que trouxera para devolução e que seu horário estava vencendo, uma vez que corria o sério risco de Rúben procurá-la devido à demora do passeio.

Voltando à recepção, depositou os livros no balcão e aguardou por Nina para despedir-se.

- Gostou dos biscoitos Morgan? - perguntou a senhora graciosamente.

- Sim, estavam excelentes tia Nina, muito obrigada pelo mimo. - respondeu Morgan encabulada, afinal, raramente recebia carinho ou atenção exclusivos, exceto de Rúben, é claro.

- Muito bem minha criança. Agora seja boazinha e retribua minha atenção levando os biscoitos ao meu adorado Rúben, pois sei que ele também os adora, tanto quanto você. Coincidência, não acha?

Morgan percebendo o comentário irônico, respondeu:

- Acho isso muito engraçado tia Nina! Mas que tal embrulhar os biscoitos e amarrar o pacote com fita vermelha deixando a surpresa mais evidente? Afinal, Rúben adora um bom suspense. - Nina a olhou de cima abaixo e resmungou alguma coisa naquele idioma antigo, propositadamente, porque sabia que ela não entenderia uma só palavra.

Pegando o pacote de biscoitos, beijou a esperta senhora nas duas faces e saiu.

Descendo as escadas teve a impressão de ver o carro negro de Rúben estacionado do outro lado da rua, mas ao retornar à janela não havia carro algum e lembrou-se de que, ultimamente, controlar os passos dela parecia estar no topo das tarefas dele. Já na galeria olhou os novos trabalhos, espantou o gato de cima do seu pacote e abraçou Nicolai com carinho.

Ao retornar à estrada, viu carros entrando e saindo dos estacionamentos, casais apaixonados aguardando mesas em restaurantes, outros andando de mãos dadas pelas calçadas e crianças circulando com suas lindas roupinhas de inverno. Quantas vezes percorreram aquelas calçadas e discutiram sobre um futuro cheio de sonhos que jamais compartilhariam? Tantos planos jogados na lixeira do tempo, pensou com grande pesar.

À entrada do estacionamento percebeu os sinais óbvios da própria exaustão: dificuldade para respirar, leve disritmia e unhas arroxeadas. - Deveria ter trazido um par de luvas, ela pensou, mas logo estaria em casa e aquecida. - Andou o mais rápido que suas pernas permitiram chegando à entrada do bosque um pouco mais cansada do que o normal.

Cercado por árvores antigas, com copas altas e maciças, o imenso bosque apresentava-se gélido e assustador, mas à noite era excepcionalmente mais tenebroso, apesar de o jardim já apresentar timidamente os sinais da primavera. Talvez fosse exatamente essa a ideia de Rúben: um local delicadamente soturno, afastando qualquer visitante normal daquele ambiente depressivo. Entretanto, o efeito que exercia sobre Morgan era completamente o oposto, como se ele suplicasse por sua presença ou ela a dele.

Quando avistou a construção deteve-se por um momento e apreciou o mausoléu negro, imponente e sombrio. Estava iluminado por altos castiçais prateados, coroados com velas brancas e chamas douradas que, mesmo protegidas pelos suportes de vidro, lutavam para permanecerem acesas.

Corajosamente seguiu até a entrada do monumento e então viu a escultura de Roman bem no meio do templo. Soube naquele momento que poderia chorar à vontade e, sem perceber, as lágrimas surgiram em seus olhos, incapacitando-a de qualquer outra reação, exceto a de expurgar toda a tristeza que carregava dia após dia em seu coração.

Ao aproximar-se da estátua tocou-a com reverência. Suplicou à morte que a visitasse logo, permitindo assim que se libertasse daquele sofrimento e solidão intermináveis, pois, a pouca vida que lhe restara transformava seus dias numa clausura insípida e a dor consumia seu espírito lentamente.

Ela sentia o sangue fluindo em suas veias, velho e frio, envenenando seus pensamentos e destruindo as poucas lembranças boas que compartilhara com Roman. Sim, enfrentaria a burocracia do conselho e a fúria de Rúben, mas seu desejo seria atendido em poucos meses e então poderia descansar naquele mesmo local, sem sonhos ou pesadelos, apenas o merecido repouso de uma alma derrotada pelo tempo.

Lembrou-se das velas e antes que tivesse forças para se levantar e acendê-las percebeu outra presença no ambiente, mas seu espírito estava suficientemente abatido para se importar com quem acompanhava seu lamento. Estava ali por ela, pela dor e por Roman, não havia outra justificativa para essa doentia necessidade que sentia pela presença dele.

Após alguns minutos conseguiu minimizar o choro e não conteve a curiosidade, olhou para trás e encontrou a silhueta de Rúben entre os pilares da construção, observando tudo silenciosamente. Considerou que era tarde para desavenças inúteis e cedo demais para perdoá-lo por aquela invasão.

Ele a acompanhou com o olhar, caminhando até a escultura fria, substituindo uma a uma as velas queimadas, como se estivesse participando de um ritual macabro. Mas em breve ele poria um fim nessas reuniões noturnas, mesmo que Morgan o odiasse pelo resto dos seus dias. Enquanto isso, respeitaria aquela procissão semanal sem perturbá-la, pois, acima de tudo, prezava pela pouca sanidade que a mantinha relativamente viva.

Morgan retornou à entrada do mausoléu em completa mudez. Passou por Rúben e, ao encará-lo, recebeu um sorriso gentil, livre de condenações ou críticas, seguido de um breve comentário:

- Morgan, precisamos conversar.

Ela apenas assentiu com a cabeça, sabia que aquela conversa não seria adiada por muito tempo, mesmo considerando sua saúde debilitada ou o seu direito de permanecer em silêncio e, apesar da gentileza explícita, a voz dele era firme e definitiva, não permitiria objeções.

Rúben compreendeu que ela nada falaria naquele momento. Como sempre, acompanharia sua recuperação, vigiaria aquele descanso perturbado e depois conversariam. Sabia que era egoísta pensar daquela forma e possessivo quando o assunto era o bem estar de Morgan, mas somente tinha paz de espírito quando ela estava em casa, protegida e bem cuidada. Noite após noite ele a observava, acompanhando os curtos períodos de sono, sempre atento a qualquer sinal de perturbação mental. Isso amenizava sua própria dor e culpa.  

Durante os primeiros meses de crise Rúben respeitou as exigências de privacidade que Morgan tanto insistira, ficando do lado de fora do quarto, sentado numa cadeira desconfortável à espera do primeiro choro, ouvindo os monólogos e lamentações delirantes durante a noite. Mas as crises evoluíram, causando desconforto entre os empregados e acarretando em inúmeras visitas médicas em plena madrugada. Como precaução, transferiu seu dormitório do terceiro andar para o quarto de hóspedes no primeiro piso e dispensou todos os empregados que trabalhavam no período noturno.

O tempo estava contra ele. Não conseguiria conter a decadência psíquica de Morgan, ela já se entregara à morte há muito tempo e não fazia questão de esconder sua decisão. Encontrava-se num verdadeiro dilema, entre a verdade sobre a morte de Roman ou outro conflito de poder. O primeiro afastaria Morgan e isso o levaria à loucura, o segundo resultaria no descontrole total das raças. Mas, naquele momento, contentou-se em andar ao lado dela, apesar de consternado e temporariamente sem opções.

Entraram na casa, Morgan na frente e Rúben atrás, como um segurança particular. Por um breve momento sentiu-se amada e segura, mas ao entrar em seu quarto seguida por ele considerou odiá-lo por mais alguns instantes. Jogou a bolsa na cama e ao virar-se para repreendê-lo deparou-se com um Rúben diferente encostado na porta. Seu olhar era ameaçador e audacioso. Pela primeira vez estava incapaz de dizer qualquer palavra que o afugentasse dali.

Ela sabia que as alucinações faziam parte do processo de transição e, definitivamente, não era um momento agradável. Reduzia o indivíduo em traumas passados e insatisfações presentes. Em ambos os casos roubavam a lucidez, dando lugar às ilusões e frustrações vividas.

Piscou várias vezes para ter certeza de que não era Roman que estava em seu quarto, mas o delírio traiu a lógica e aquele espectro era tudo o que importava naquele instante. Queria correr e abraçá-lo, mas no primeiro passo ele sorriu docemente e ela entrou num estado apático completo.

Rúben estava com Morgan nos braços, ciente de que havia ultrapassado uma barreira extremamente perigosa, pois não tinha o direito de alterar as percepções alheias, de sondar os pensamentos ou interferir no livre arbítrio de qualquer ser humano. De qualquer maneira, sentia-se feliz e tê-la tão perto do que jamais a tivera na última década foi a maior recompensa daquele delito premeditado. Se tomasse as precauções adequadas ninguém saberia o que acontecera naquele quarto, nem mesmo Morgan.

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